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Tissot explora o Deserto Australiano

09/Out/2007 - Thiago nunes - Austrália

Invernados sob chuva e frio nesta nebulosa primavera australiana, eu e meu amigo Leco Bezzi vimos, em menos de um mês, quatro frentes frias carregando grandes ondulações serem abatidas e despedaçadas pelo forte e incessante vento maral.

Sem saber mais o que fazer diante de tantas ondas desperdiçadas na nossa cara, concluímos que, de um jeito ou de outro, deveríamos tentar reverter a situação - ou nosso caos mental se agravaria ainda mais.

Decidimos, de última hora, que nos jogaríamos rumo ao deserto, onde o terral alisa o mar, as ondas azuis contrastam com a terra vermelha e uma bermuda era a única coisa que precisaríamos vestir - ao menos fora d’água e durante o dia.

A esta altura já estávamos acostumados com o barulho de motor furado do “Camufla” - nossa caranga - e sabíamos que uma hora ou outra, de algum jeito, aos trancos e barrancos, provavelmente acabaríamos chegando.

Não deveria ser tão difícil assim, apenas 1,5 mil quilômetros e estaríamos lá. Alguns pacotes de miojo, latas de atum, galões de água e um amontoado de pranchas sobre o teto mais tarde, e estávamos prontos para partir pela manhã quando, minutos antes do segundo e derradeiro café, nosso amigo Haiden ligou dizendo que estava indo com a gente e considerava seu carro mais adaptado para a trip.

Pelo menos agora tínhamos certeza de que iríamos chegar. Dezoito horas de estrada depois, encostamos ao lado de uma via de chão batido e por ali levantamos acampamento a 150 quilômetros de distância do pico.

Pela manhã, acordamos com o Sol e saímos em busca das ondas. Na chegada, surpresos com tamanha novidade, vimos, cada vez mais claramente, que o mar se apresentava um tanto menor do que esperávamos. Consideravelmente menor, para falar a verdade.

Quando as séries se erguiam, a perfeição das linhas e alguns perigos visíveis da afiada bancada palpitavam ainda mais nosso coração e o tamanho das ondas era mais do que suficiente. Porém, elas eram muito inconstantes - duas ou três aparecendo de meia em meia hora - o que tornava o ato de pegá-las ainda mais difícil.

Dali em diante começamos a cogitar o que havíamos feito de errado em nossos cálculos, já que esta frente era enorme e prometia esmagar qualquer coisa em seu caminho. Não encontramos respostas. Durante os dias que antecederam a viagem, checamos insistentemente os gráficos de vento, direção, altura, período e maré – mais do que isto, só com a ajuda do Professor Eloi.

Ao observar com calma as coisas ao nosso redor - rochas, terra, o mar, o estilo das pessoas e os animais que por ali viviam - nos demos conta de onde realmente havíamos nos enfiado. Aos poucos começamos a perceber o que significa estar no deserto, ou seja, em um local completamente inóspito, em que, sem o auxilio da tecnologia ou de outros seres humanos, não sobreviveríamos por muito tempo. E que deveria haver muito mais coisas entre o céu e aquela terra seca, além de ondas... Ou a falta delas.

O deserto nos torna, de algum modo, pessoas diferentes das que somos normalmente. Percebe-se que os humanos se dirigem, aos seus semelhantes, com mais atenção e cuidados. E todos se vêem, espontaneamente, ligados em uma pequena e unida comunidade, onde a amizade é uma reação natural frente à rispidez do ambiente a sua volta, que mostra, claramente, que por ali você não duraria muito tempo sozinho.

A situação de isolamento gera afinidades e aproxima as pessoas. O deserto - como seu nome já sugere - parece esvaziar nossa mente.

Funciona como uma espécie de meditação, onde tudo o que foi deixado para trás acaba saindo da sua cabeça e lhe restam apenas os fatos do momento. As idéias se tornam mais claras.

Acho que isso nos ajudou a compreender melhor por que estávamos ali, o que realmente queremos para nossas vidas e como devemos agir para estar de acordo com nossa própria natureza.

Naquele momento passei a ter certeza de que tínhamos feito tudo certo.

Ao longo da costa, durante uma caminhada de reconhecimento pela área, nos deparamos com inúmeras tumbas de pessoas que por ali passaram desta para a outra vida.

Quilômetros e quilômetros de costa rochosa e mar agitado impossibilitavam a abordagem em terra firme dos navios que, iniciando sua exploração no continente australiano, há longos anos, vagavam por estas águas em condições de extremo risco e incerteza.

Sem ter onde atracar e com conhecimentos ínfimos da nova costa recém-desbravada, muitos e trágicos foram os destinos ali selados. Fica ainda mais fácil, nessa situação, perceber que realmente existem mais coisas entre o céu azul e a areia seca, que nossos olhos podem enxergar.

Muito do que você aprende, nessas horas, vem diretamente do seu coração. Para intensificar ainda mais o que estávamos sentindo, ao cair da noite, veio a lua cheia com sua luz inspiradora, mostrando que a vida é feita, além de dificuldades, de alegria e esperança. Sua presença gerou conforto e bem-estar no acampamento.

Acendemos uma fogueira e começamos a nos sentir felizes por permanecer acordados. Imagino como esses momentos deveriam ser ansiosamente aguardados por povos antigos que não tinham energia elétrica. A oportunidade certa para esticar a night e interagir com as gatinhas da época.

Para nós, naquele momento, era hora de recarregar as baterias e descansar para um novo dia. Com a chegada do sono, nos entocamos nas barracas, protegidos do vento e acolhidos do frio. Acordei com a galera pela manhã e fui direto para a água. As ondas estavam pesadas, rápidas e perigosas. Sabia que ao menor vacilo teríamos duas horas e meia de viagem até o hospital mais próximo, que os corais eram afiadíssimos e que os tubarões rondavam a área.

As séries apareciam com mais constância e renderam as fotos que acompanham estas palavras. Não conseguia me imaginar fazendo outra coisa naquele momento senão esperando minha vez de dropar uma. Optei pelas da série e tive muita sorte na minha primeira do dia, sem dúvidas, a melhor que consegui surfar.

No fim, para nossa realização, tudo acabou bem para todos. O surf rendeu grandes momentos e depois de tantas viagens em tão pouco tempo, estávamos prontos pra voltar pra casa, nos sentindo renovados e agraciados pela magia do deserto.

Sabíamos que o swell perderia força rapidamente, que o vento viraria e que chegava nossa hora de partir. Saímos da terra seca um dia depois de termos ingressado nela, felizes e prontos pra encarar mais 18 horas de estrada.

Voltamos pra casa visitando alguns locais pelo caminho, curtindo as surpresas e despreocupados com a longa jornada. Acampamos na praia para dormir e na manhã seguinte tocamos a barca para completar o caminho que faltava.

Nosso maior passatempo era tomar banho de mar toda vez que a estrada se aproximava do oceano e foi curioso observar a troca das paisagens ao longo da viagem, onde a vegetação rasteira foi, gradualmente, cedendo espaço a árvores e flores.

O bate-volta maluco da galera rendeu ainda mais surpresas do que o próprio surf poderia nos reservar, e nos deu ainda mais ânimo para continuarmos em nossa busca de ondas, surf e um pouco de sabedoria.

Para obter mais informações sobre Fabiano Tissot, visite o site Diário de Viagens