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Brasil

Surf: grupos locais, pequenas comunidades e benefícios para a sociedade

Sylvia Abaurre

Como o "espírito do surf" vem construindo pontes entre os agrupamentos humanos.

O surgimento do surf

Desde os primórdios do Surf, o binômio 1(um) homem, 1(uma) prancha é uma atividade, que, embora pareça individual, tem um forte reflexo na comunidade local e influência na sociedade. 

Quando fazemos um recuo na história, para compreendermos melhor a origem destas interações, encontramos indícios que apontam aproximadamente para 1500 anos atrás como sendo o período em que os polinésios desciam as ondas com pranchas de surf feitas de tábuas de madeirite (compensado dos navios ingleses). Como no Hawaii, o surf na Polinésia estava associado às raízes religiosas, culturais e de algum modo, sociais.

As raízes culturais do surf, através do ritualismo, impunham aos nativos uma determinada hierarquia de prática. Aos reis e suas proles era permitido surfar na posição de pé. As pranchas eram bem maiores do que as atuais. Tinham sete pés de tamanho e eram mais evoluídas, pois faziam parte de todo um ritual de confecção e só podiam ser utilizadas pela realeza. As pranchas menores, mais mal acabadas, desprezadas pelos chefes, eram destinadas aos nativos ou súditos que estavam mais próximos da família real. A eles cabia deslizar nas ondas deitados. O restante da tribo tinha restrições para a sua prática. 

Por outro lado, alguns atribuem a origem do surf aos habitantes da Ilha de Uros, no Peru, que, há 450 anos, desafiavam o mar em balsas feitas de "totora'', um tipo de palha. Os pescadores ficavam em pé em cima das balsas (Caballitos de Totora) e direcionavam-as com os remos em direção à praia. Até hoje são usadas na vila de pescadores de Huanchaco, em Trujillo. Estas balsas são as ancestrais da prancha. Porém, a origem do surf traz sempre uma grande polêmica, pois os havaianos desciam as ondas pelo simples e puro prazer de fazê-lo,  e para os peruanos, descer as ondas era um modo de “voltar” do trabalho. Atualmente se dá a origem do esporte aos havaianos, no entanto, sempre que podem, os peruanos tentam reivindicar essa origem.

Navio "Cavalo de Totora. Foto: Wikipedia, por Luis García


Praia de Huanchaco, Peru. Foto: Wikipedia, por Bernard Gagnon - Obra do próprio

E o surf segue movimentando as comunidades ao redor do mundo

Aliás, é impossível falar do impacto do surf para a sociedade sem trazer à tona o caso de Lobitos, no Peru. Uma cidade costeira atualmente conhecida como um dos melhores lugares do país para surfar. Nem sempre foi assim, foi próspera enquanto foi um porto inglês e, com a saída deles, se tornou quase uma cidade fantasma. Depois, na década 60, com o governo do General Velasco Alvarado foi transformada numa zona militar e o seu acesso ficou restrito durante vários anos.

Com a descoberta do surf a cidade começou a ganhar vida nova. 

Por lá, agora as ondas que atraem muitos surfistas todos os anos tem sua proteção firmada em lei. Em 2014, entrou em vigor a "Ley de Rompientes", que pode ser traduzida como "Lei das Arrebentações", tornando o Peru o primeiro país do mundo a dar proteção legal às suas ondas.

Nos termos da lei, o desenvolvimento de infraestrutura, exploração de petróleo e gás e atividades de pesca que possam prejudicar os melhores picos de surfe foram restringidos. Por várias vezes, iniciativas que poderiam perturbar as ondas em Lobitos foram interrompidas.

A lei peruana não é baseada apenas na valorização da prática do esporte, mas no reconhecimento de que ele contribui econômica e ambientalmente para toda a região. E a cidade começa a renascer. 

Dos Estados Unidos a Bali, há cada vez mais evidências que sugerem que o surfe pode ser surpreendentemente benéfico para o ecossistema costeiro. Nazaré, em Portugal, é um outro caso em que o surf de ondas grandes levou desenvolvimento e movimento à pequena cidade

Por aqui temos o caso de Saquarema que sempre teve tradição no surf, mas que, após se tornar palco anual de uma das etapas do WSL, vem se desenvolvendo rapidamente, garantindo novas iniciativas e sustentabilidade à comunidade local

A Save The Waves Coalition fez parceria com o Surf and Sustainability Research Group (SandS) da Universidade Federal de Santa Catarina, para dirigir uma pesquisa e executar um estudo em Guarda do Embaú (SC). Os resultados do estudo Surfonomics mostram que os turistas de surf e seus companheiros de viagem representam aproximadamente 44% dos turistas que visitam Guarda do Embaú e o turismo de surf contribui com aproximadamente US$ 4 milhões por ano para a economia local. Os surfistas gastam em média o dobro que os turistas e são responsáveis por cerca de 77% da contribuição do turismo para a economia local. 

Claro que as comunidades vão ter que controlar estas iniciativas, sob o risco de uma super exploração levar a sua extinção. Não se mata a galinha dos ovos de ouro! 

Até as pequenas comunidades são beneficiadas pela incorporação do surf em seu dia a dia. Moro em Manguinhos (ES), um local oriundo de uma vila de pescadores. Por aqui temos projeto de limpeza das praias, escolinha de surf , movimentos de replantio de restinga e outras atividades culturais e ecológicas oriundas da movimentação do pessoal que se agrupa em torno do surf. Algumas vezes a pequena comunidade se reúne para contribuir de forma que um ou mais de seus surfistas possam competir em algum evento fora. 

O surf, já há algum tempo, deixou de ser apenas um esporte, e é uma filosofia de vida. Exerce uma grande influência na moda, na música, no cinema, enfim, o surf está em todos os lugares. O praticante do esporte possui um estilo próprio e pode facilmente ser identificado em qualquer lugar. Os campeonatos agora são transmitidos mundialmente. Aquela imagem do surfista "vagabundo" tão comum nos anos 70, ficou definitivamente para trás. 

Projetos Globais de impacto mundial

Grandes são os movimentos organizados por surfistas. O Waves For Water, por exemplo, criado pelo surfista profissional Jon Rose em 2009 é uma organização sem fins lucrativos que se concentra em corrigir os desequilíbrios da escassez de água, em comunidades em desenvolvimento em todo o mundo.

Fonte: site da Waves for Water - wavesforwater.com

Nos últimos dez anos, implementaram 155 programas de água limpa, em 48 países – usando sistemas de filtragem de água (150.000), poços e sistemas de captação de água da chuva, impactando cerca de 3.750.000 pessoas. Além do foco principal em fornecer água potável, também coordenam e executam esforços de socorro em desastres naturais em todo o mundo. Já atuaram em 33 grandes desastres naturais, até o momento, incluindo iniciativas no Nepal, Bósnia, Filipinas, Indonésia, Haiti, Japão, Chile e Paquistão.

O surf integra e conecta diferentes gerações

O surf contemporâneo é praticado por pessoas de todas as idades, crianças, jovens, adultos e idosos, democratizando-se e derrubando as barreiras do preconceito. Um exemplo disso é a prática desse esporte por pessoas com necessidades especiais, e também homens e mulheres de todas as partes do mundo, mesmo moradores de lugares distantes dos litorais, ganhando espaço em instituições sociais formais como as escolas e universidades. Começam a surgir as piscinas de ondas, levando infra estrutura de surf para o interior do país.

O surf nunca foi somente uma prática esportiva voltada ao lazer, mas um instrumento de interação social, proporcionando aos seus praticantes momentos de prazer e de encontro entre gerações. Desde os primórdios de seu surgimento

Alguns rituais característicos desta comunidade são exemplo de interações sociais bastante interessantes. Você, certamente já ouviu falar, viu ou participou de algum ritual comunitário de "Paddle out". É uma cerimônia em que surfistas se reúnem em um grande círculo no mar em memória e homenagem a alguém que morreu.

"O paddle out abraça a temporalidade de uma vida individual entre família, amigos e comunidade dentro da infinidade e eternidade do oceano. (…) Comemora e reconhece a condição humana da mortalidade num ritual baseado na natureza, num processo altamente físico e afetivo”.

Esta é a conclusão a que chegou um estudo científico de 2018 realizado pela Escola de Humanidades, Línguas e Ciências Sociais da universidade australiana Griffith. Um ritual, com provável origem havaiana, dedicado a compartilhar entre um grupo de pessoas o profundo sentimento da ausência a partir da finitude de uma vida com a intenção simbólica de entregá-la à infinitude representada pelo mar.

Através de rituais o ser humano tem fortalecido seus laços sociais através dos tempos. Além disso, os diversos modelos de sociedade derivam das relações entre seres humanos e o meio ambiente, que ao continuarem a assumir formas múltiplas no tempo e espaço, podem resultar em melhores padrões de qualidade de vida para as populações e gerações futuras. 

O  Surf é parte integrante deste movimento. O surf é parte integrante da sociedade.

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Sylvia Abaurre foi nascida no ano da graça de 1960 e criada na beira do mar. Maratimba de uma vila de pescadores chamada Manguinhos, saia de casa e pisava na areia da praia. Acostumou-se a ouvir as cantigas das esposas dos pescadores que passavam as noites limpando peixes sob os quitungos na praia, sob a luz de lampiões. Sua relação com o mar é profunda e tem o tempo de uma vida. Durante a infância, rolou na areia, pescou, pegou muito "jacaré". Aprendeu um pouco a ler o tempo e o mar. Cresceu e resolveu entender melhor um pouco como funcionava este ambiente que tanto a acolhia e atraia. Foi cursar Biologia na UFES e adquiriu ainda a consciência ambiental que era intuitiva na infância. A vida profissional deu uma guinada e foi para o campo da tecnologia. Nunca largou da praia e do mar. Foi uma das primeiras bodyboarders aqui do ES e continua a pegar onda sempre. Também tem um caiaque onde gosta de remar e explorar os arrecifes por aqui. Na pandemia da Covid-19 tomou gosto pela natação em águas abertas e é o que faz todo dia entre as 6 e 7 da manhã, depois que se aposentou: nada entre 1,5 e 3,5 km e diz bom dia às tartarugas e golfinhos locais. 

Instagram: @sylvia_abaurre

 

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